Mães e Filhos que Mudaram o Mundo: Catherine Booth e Evangeline Booth (século XIX–XX)

Há histórias que transcendem gerações. Histórias que não se encerram na figura de uma única pessoa, mas que continuam vivas através de seus filhos, discípulos e daqueles inspirados pelas sementes lançadas ao vento. A trajetória de Catherine Booth e sua filha Evangeline é exatamente assim: um testemunho vivo do poder transformador da fé, da liderança em família e da força moral de mulheres determinadas a desafiar convenções e reescrever as regras de seu tempo.

Pintura de duas mulheres olhando para o céu em espanto
Catherine & Evangeline Booth – Pintura a Óleo da Mãe do Exército de Salvação e de “Eva, a Comandante” (séc. XIX–XX)

No século XIX, um período marcado por desigualdades sociais gritantes, normas rígidas sobre o que as mulheres poderiam ou não fazer eram amplamente aceitas como “ordem natural”. A Era Vitoriana foi palco de imensa transformação industrial e cultural – ao mesmo tempo em que reforçava papéis tradicionais para homens e mulheres, particularmente sob a sombra das igrejas cristãs que dominavam discursos públicos sobre moralidade. Nesse ambiente sufocante, surgiram figuras inesperadas – pessoas com coragem para questionar velhos padrões e trazer à tona novas possibilidades. Catherine Booth foi uma dessas figuras.

Mais do que cofundadora do Exército de Salvação ao lado do marido William Booth, Catherine era uma teóloga visionária, uma pregadora destemida e uma defensora incansável dos marginalizados. Num tempo em que mulheres eram mantidas longe do púlpito, ela não apenas assumiu aquele espaço, mas fez sua voz ecoar com a força de uma tempestade, afirmando que o verdadeiro cristianismo não podia fechar os olhos para os pobres nem para as mulheres.

É interessante pensar em como sua paixão pela justiça social foi mais do que uma crença pessoal; ela tornou-se a pedra angular de um movimento global. Catherine não apenas pregava; ela agia. Para ela, ser cristão significava viver ativamente em serviço ao próximo, criando soluções práticas para os sofrimentos cotidianos das pessoas. E essa visão acabaria se tornando um legado familiar.

Evangeline Booth: A Continuidade de um Legado

Evangeline Booth, uma das oito crianças criadas por Catherine e William, impressionou o mundo ao assumir as rédeas do Exército de Salvação décadas depois. Sim, havia críticas – muitas delas vindas dos próprios círculos religiosos da época. Contra todas as expectativas, Evangeline tomou a dianteira com coragem em uma época em que uma mulher sequer sonhar com isso já era algo raro. Ela se destacou não apenas pela continuidade da obra dos pais, mas pela expansão internacional desse trabalho, levando a mensagem e as ações do Exército de Salvação a novas fronteiras geográficas e culturais.

Antes de nos aprofundarmos na vida dessas duas mulheres fascinantes, é preciso observar o contexto mais amplo que moldou suas jornadas e deu significado às suas ações.

A Era Vitoriana: Um Mundo Conservador

Na Inglaterra vitoriana – onde Catherine e William Booth construíram suas ideias e valores –, as expectativas sobre as mulheres eram quase claustrofóbicas. Elas deveriam ser esposas obedientes, administradoras domésticas exemplares e símbolos de moralidade familiar. As contribuições de mulheres, sejam intelectuais ou públicas, eram recebidas com desconfiança. No campo religioso, prevalecia a ideia de que o papel de liderança espiritual cabia unicamente aos homens.

Dentro desse contexto estagnado surgiu Catherine Mumford (seu nome de solteira), cuja visão espiritual ia na contramão do conformismo predominante. Desde jovem, ela demonstrou uma mente aguçada para discutir teologia – algo inusitado para meninas na época – e uma disposição única em questionar práticas religiosas tradicionais. Ela acreditava que as Escrituras promoviam a igualdade entre homens e mulheres perante Deus, questionando as interpretações seletivas que sustentavam a exclusão feminina.

Uma Parceria Transformadora

Mais tarde, ao casar-se com William Booth (que na época já tinha aspirações ministeriais), Catherine encontrou um parceiro disposto a encorajar sua voz ativa e perspicaz nos debates teológicos. O apoio mútuo entre eles resultou numa parceria rara: enquanto ele tecia redes de ação missionária nas ruas, ela oferecia o fundamento filosófico e moral para transformar esses esforços em um movimento coeso – culminando no nascimento do Exército de Salvação em 1865.

A resistência inicial era considerável: críticos dentro das igrejas tradicionais viam sua abordagem como radical demais; muitos questionavam a legitimidade de mulheres na liderança cristã. Mas Catherine permaneceu firme. Com discursos afiados e carisma ímpar, ela desmantelava argumentos conservadores enquanto rodeava-se de ações concretas: abrindo refúgios para prostitutas resgatadas das ruas ou organizando campanhas públicas contra abuso infantil.

Evangeline Booth: Expandindo Horizontes

Se Catherine Booth ergueu as fundações teológicas e morais do Exército de Salvação, sua filha Evangeline veio para expandir os horizontes desse projeto de maneira quase inimaginável. E não era tarefa simples. Ao assumir papéis de liderança no movimento, primeiro no Reino Unido e depois nos Estados Unidos, Evangeline se deparou com desafios significativos: precisava lidar com uma audiência que variava entre o apoio apaixonado e a descrença, enquanto enfrentava a resistência de colegas que questionavam se uma mulher seria capaz de comandar um movimento global.

Mas Evangeline tinha algo que poucos conseguiam igualar: uma habilidade extraordinária de combinar carisma pessoal com estratégias organizacionais ousadas. Ela sabia se conectar com as massas – algo que herdou da mãe – ao mesmo tempo em que era uma administradora excepcionalmente eficiente. Em 1934, tornou-se a primeira mulher a ocupar o cargo mais alto do Exército de Salvação, General da organização, tornando-se não apenas símbolo de continuidade familiar, mas um exemplo vivo do alcance internacional das ideias da mãe.

Iniciativas Humanitárias

Durante sua liderança, Evangeline impulsionou iniciativas voltadas para alívio humanitário global em tempos de crise – incluindo projetos inovadores durante a Grande Depressão nos Estados Unidos. Quando multidões famintas procuravam por ajuda prática durante os anos difíceis dos anos 1930, lá estava ela junto às “cantinas móveis” do Exército de Salvação: vans estacionadas nas esquinas distribuindo comida quente e roupas aos necessitados. Essa abordagem prática, nascida da teologia da ação social de Catherine, foi moldada para dialogar com as realidades do mundo urbano-industrial do século XX.

Quebrando Barreiras e Redefinindo Espaços

A trajetória de Evangeline ajuda a ilustrar algo maior sobre mães e filhas que compartilham espaços de poder: enquanto algumas herdam simplesmente objetivos ou ideais, outras assumem o corajoso trabalho de remodelar esses pilares para novas realidades históricas.

Evangeline não era apenas uma “herdeira” das causas da mãe; ela precisou romper barreiras culturais mais amplas, muitas delas enraizadas no próprio movimento cristão que ela liderava. Em vários momentos foi acusada – assim como Catherine antes dela – de exagerar na “emocionalidade” atribuída às mulheres ou de pensar “grandioso demais”. Era criticada não só pelas igrejas tradicionais à volta, mas até mesmo por aliados dentro do Exército de Salvação que resistiam às suas inovações.

Para ela, não havia dúvidas: a fé cristã era uma força transformadora capaz de ajudar a reconstruir vidas e trazer esperança para aqueles que a sociedade deixava de lado. Para cada crítica enfrentada por pregar ou liderar publicamente como mulher, havia dezenas de comunidades inteiras sendo transformadas através dos esforços promovidos sob sua direção.

O Legado Que Ecoa No Presente

O impacto dessas duas mulheres não terminou com suas vidas ou com seus cargos no Exército de Salvação. Muito pelo contrário: o trabalho delas continua pulsando nos movimentos modernos de assistência social cristã e além. Muitas ONGs internacionais se baseiam na filosofia criada pela família Booth – um cristianismo movido pela ação prática e pela ideia radical (à época) de igualitarismo espiritual.

Catherine Booth talvez tenha sido pioneira ao mostrar que grandes mudanças exigem coragem intelectual para desafiar normas injustas; Evangeline Booth ampliou essa visão ao tornar-se prova viva do impacto transformador dessas ideias quando inseridas no tecido social global.

Para nós hoje – vivendo em tempos marcados por desigualdades tão profundas quanto as do século XIX –, esta história deixa perguntas instigantes: Quantas lideranças femininas ainda deixamos sufocadas? E será que estamos realmente dispostos a imaginar um futuro onde estruturas hierárquicas sejam continuamente desafiadas?

Talvez a resposta resida exatamente nessas vidas incríveis compartilhadas entre mãe e filha: coragem, inovação e serviço, amarrados por algo maior do que ambas – um profundo senso de justiça divina.

Curiosidades

Catherine Booth e Evangeline Booth (século XIX–XX) – Catherine Booth (1829–1890), cofundadora do Exército de Salvação, foi não apenas esposa do pregador William Booth, mas também mãe e mentora de oito filhos – entre eles Evangeline Booth (1865–1950). Conhecida como a “Mãe do Exército de Salvação”, Catherine desafiou as convenções vitorianas defendendo o direito da mulher de pregar e evangelizar.

Em 1855, ela mesma começou a pregar publicamente, e seus sermões ardorosos atraíam multidões. Em casa, Catherine educou as filhas e filhos no mesmo espírito de serviço ao próximo e amor pelos marginalizados. Sua sétima filha, Evangeline, cresceu literalmente dentro da missão: desde jovem ajudava os pais no trabalho com pobres e perdidos nas ruas de Londres. Destemida como a mãe, Evangeline – apelidada carinhosamente de “Eva, a comandante” – era enviada pelos Booth às frentes mais difíceis, onde o Exército de Salvação enfrentava oposição ou perigo, pois “quando havia ameaça à obra, William Booth dizia: ‘Mandem a Eva!’”.

Evangeline serviu como oficial do Exército de Salvação no Reino Unido, depois comandou a expansão no Canadá e nos Estados Unidos, liderando campanhas de ajuda em crises como o terremoto de São Francisco em 1906 e mobilizando centenas de voluntários durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1934, Evangeline Booth tornou-se a 1ª mulher a dirigir a obra internacional do Exército de Salvação, ao ser eleita General da instituição – coroando uma vida inteira seguindo os passos da mãe na fé e na liderança. Juntas, Catherine e Evangeline espalharam pelo mundo a mensagem cristã aliada à ação social: Catherine lançou os alicerces teológicos e o exemplo de coragem, enquanto Evangeline levou adiante essa missão nas primeiras décadas do século XX, abrindo portas para o ministério feminino e influenciando milhões de vidas resgatadas da miséria material e espiritual.

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